1º de ABRIL – 45 ANOS DE INSTAURAÇÃO DA “DITABRANDA” ( 1ª Parte)
Já que alguns órgãos da imprensa negam, e dizem que a Ditadura foi uma Ditabranda, vou relatar a minha experiência com essa tal DITABRANDA.
No dia 1º de abril de 1964, como de costume, já antes das 07:00h estava acordado e pronto para ir para a escola. Lúcio Figueirôa, o meu vizinho da esquerda, me disse que não haveria aulas e que os tanques de guerra estavam nas ruas. Como já estava prevenido pensei que ele queria me pregar um 1º de abril. Aos poucos fui percebendo que algo de fato estava diferente. O carro do meu pai não se encontrava na garagem e não fui para a escola. O resto do dia foi de visitas inesperadas de tios e outros. No dia seguinte saímos e fomos para a casa da minha avó materna. Seguiram-se dias em que sucessivas vezes jipes apareciam procurando o meu pai, que de fato eu não sabia onde se encontrava. Estava sumido. Na época meu pai era deputado estadual e líder do governo de Miguel Arraes na assembléia legislativa. Oriundo do movimento sindical bancário e funcionário do Banco do Brasil há 18anos.
Como existia na minha casa uma relativa transparência de atos e fatos, eu já pressentia que se tratava do fato do meu pai ser “comunista”. Meu pai já me havia orientado a responder aos meninos da vizinhança, quando fosse chamado de “filho de comunista”, que: “é melhor ser comunista do que ladrão!”
Finalmente no dia 06 de abril soube que o meu pai se encontrava preso, mas que logo aquilo se resolveria. Assim começava a “ditabranda” para mim e para os meus. Longe da minha casa, do meu quintal com fruteiras e dos meus carrinhos de lata artesanais. Ao invés de uma rua de bairro, uma rua do centro da cidade.
Bem acolhido, amado e protegido. Mas longe da minha casa.
Houve o dia do “bota fora” e da “fogueira da santa inquisição”. Tentava salvar escondendo, livros, revistas de Cuba, flâmulas e broches. Mas por segurança tínhamos que nos desfazer daquele “material subversivo”. Eu não entendia como podiam as letras fazerem tanto mal as pessoas? Letras dos livros que meu pai tanto gostava. Consegui esconder e salvar duas caixas de charutos cubanos.
Foram meses de revolta interna movida tão somente pelas saudades e pelo sentimento de perda. O sentido da injustiça não se delineava bem na minha cabeça. Mas de uma coisa eu tinha certeza: meu pai não havia nem matado e nem roubado, ninguém e nada.
Foi nessa época que os meus tios (irmã da minha mãe e primo do meu pai), disponibilizaram parte de uma residência para minha mãe e os quatro filhos(dois casais). Era bem mais ampla do que a casa da minha avó materna.
Em julho de 1964 consegui ir visitar meu pai em Fernando de Noronha, indo num avião da FAB. Passamos umas 3 horas juntos, almoçamos, e ele me deu uma lata de suco de tomate que foi buscar na sua cela, “especialmente para mim”.
Foi durante esse período que quando chegava alguma correspondência do meu pai para a minha mãe, nós íamos ao IVº Exército, onde o então Coronel Ibiapina (hoje general de pijamas), lia na carta com o que “ele achava que devia ser lido” e logo após na nossa frente a rasgava e metia a mesma no balde de lixo.
Mais ou menos em setembro de 1964 ele veio para o Recife, e ficou na 2ª Cia de Guardas, onde diariamente eu levava uma marmita e um litro de leite. Muitas vezes no lacre de alumínio do litro de vidro do leite, minha mãe escondia um mini-bilhete para ele.
Em dezembro meu pai foi transferido para a Casa de Detenção do Recife, onde estavam Gregório Bezerra e Ivo Valença (dois que me lembro pois brincavam e conversavam comigo). Para as minhas duas irmãs, de 4 e 2 dois anos respectivamente, a Casa de Detenção era um “hospital”. Uma mentirinha para a pouca compreensão delas...?
Apesar de toda a adversidade do momento foi uma das noites de natal mais marcante e feliz que passei na minha vida. Na Casa de Detenção do Recife, com o meu pai preso, mas estávamos todos juntos, e era o que de fato era importante.
No começo de 1965, tentamos uma saída, e de novo com o casal de tios irmãos, pegamos uma carona para o Rio de Janeiro, num Aero-Willis 2600. O irmão do meu pai, um tecnoburro oriundo do BID, não conseguiu agüentar a barra até que um Habeas-Corpus fosse deferido para o meu pai.
Ao final de fevereiro de 1965, eu e meu irmão voltamos para o Recife.
Creio que na realidade o meu “tio gilvan” não queria comprometer a sua carreira profissional com aspectos fora do seu contexto.
Em fevereiro de 1965, eu e meu irmão Ivan, voltamos para o Recife.
De novo a mesma maratona.
Em abril de 1965, por força de um Habeas-Corpus, meu pai foi libertado enfim. Foram 369 dias preso.
Ainda tentou permanecer em Recife, mas as insistentes “visitas e convites” do DOPS, acabaram com as esperanças de um possível recomeço. Ele deixou Recife rumo ao Rio de Janeiro. Aí começava o grande êxodo do meu pai. França, Checoslovaquia, Bulgária, Hungria, Argélia, e por fim se exilando na Republica Oriental do Uruguai.
Vocês não imaginam o que a falta e o desconhecimento de um destino fazem com a cabeça de uma criança.
Terminei o ano de 1965 sendo suspenso da escola primária, com uma típica revolta sem causa e mais uma vez maculado no meu direito.
O ano de 1966 não seria dos melhores. Por medo ou precaução os familiares acharem por bem me inscreverem em um colégio interno. Os beneditinos, ou por fama ou por conservadorismo, foram os escolhidos: MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE GARANHUNS.
Só quem viveu situação semelhante pode avaliar o que é.
Enxoval de pijamas de flanela, cobertores, tudo em conformidade com as regras “monásticas”.
No primeiro dia chorei na cama antes de dormir. Mas tinha sido educado a “quando gostar mastigue, quando não gostar engula!”
Após 45 dias, meu irmão Ivan, também veio dividir a minha agonia. Já não estava tão sozinho.
Conseguimos superar o ano, e ao final de 1966, fomos surpreendidos com uma notícia no mínimo alvissareira: iríamos viajar para nos encontrar com papai.
Em dezembro de 1966, iniciamos uma viagem rumo a Montevidéu-Uruguai. Recife-Rio; Rio-São Paulo; São Paulo-Curitiba; Curitiba-Porto Alegre e Porto Alegre Montevidéu.
Só quem passou tanto tempo sem avistar o pai sabe o que significou o nosso reencontro. Foi como se todo o mal estivesse enterrado.
No minúsculo apartamento do meu pai, na playa de pocitos, a geladeira estava repleta daquelas frutas típicas e anormais aos climas quentes: uvas, ameixas, pêssegos.
Enfim o terror havia acabado.
Neste final de ano (1966) e inicio de verão de 1967, tive a grata satisfação de conhecer homens como Darci Ribeiro, Amauri Silva, João Goulart, Leonel Brizola, Stanford, Cláudio Braga, Almir Braga, dentre tantos outros que me causavam admiração.
Foi um verdadeiro “summer holliday”. Afinal, depois de tanto sofrimento eu estava de novo feliz e alegre, no fundo da minha alma.
O meu pai, de vez em quando, também sorria e brincava conosco, com as suas gargalhadas personalíssimas.
Parodiando Neruda, confesso que estava feliz.
Fomos matriculados, eu e Ivan(meu irmão) numa escola do Uruguai – Escuela Brasil.
A vida parecia que tinha voltado ao seu ritmo normal. Aprendemos a língua e parte da história e geografia do país.
Dois meses depois minhas duas irmãs, Susana e Helena, vieram completar a família.
Vocês não imaginam o que é um casal com quatro filhos morar em um kitnet, composto de quarto, sala cozinha e banheiro! Neste pequeno imóvel a minha mãe lavava as roupas de todos. Cama, mesa, banho e roupas pessoais. Hoje reconheço a fibra e a coragem que ela tinha. Nunca disse um ai!
Éramos todos lutadores. E tínhamos o tal espírito de corpo!
Como em 1968 eu e meu irmão começaríamos o ginásio, deveríamos voltar para estudar no Brasil.
Voltamos para Pernambuco, e fomos para um internato em Garanhuns/PE, o Colégio Diocesano. Nesse Colégio tínhamos o apoio de Miguel Malta e João Bosco Coutinho, simpatizantes do movimento progressista, e aparentados de amigos do meu pai.
Ao final do ano quando estávamos retornando ao Uruguai, tínhamos feito uma escala estratégica no rio de Janeiro, e lá nos encontrávamos na fatídica sexta-feira, 13 de dezembro. A coisa não dava sinais de melhora, ao contrário o AI 5 acabou de vez com todos os direitos.
Passamos o final do ano em Montevidéu e as férias, para no início do ano de 1969 irmos estudar, internos também, em Porto Alegre no Colégio Marcelino Champagnat.
Foram tempos difíceis, mas entremeados de novos horizontes, novos hábitos e culturas. Dizem que toda coisa ruim traz uma coisa boa.
No final de 1969 retornamos, eu e meu irmão, para o Uruguai, e tivemos a notícia de que voltaríamos para o Brasil.
Fomos em partes para o Rio de Janeiro.
Alugaram um apartamento entre Santa Tereza e o Catumbi. Meu pai se chamaria Amauri Lages, e as meninas foram orientadas a não falar em Uruguai. Tanto que de vez em quando as duas em conversas se repreendiam mutuamente:”não se pode falar em Uruguai”... Seria cômico se não fosse trágico. Eu e Ivan ganhamos bicicletas semi-novas, rodamos e conhecemos o Rio de Janeiro, horizontalmente e verticalmente. Zona sul, norte, mata da gávea e estrada do corcovado. Também fizemos programas com a família toda reunida: museu da Quinta da Boa Vista, Museu do Índio, Urca e Pão de Açúcar.
Assistimos o 1000º gol de Pelé, rompemos o ano na praia de Copacabana.
O ano de 1970 começava sob o comando sangrento de Médici. Em fevereiro um amigo do meu pai foi preso, junto com a família, e o seu filho de 11 anos foi torturado na frente dele.
Isto significou a gota d’água para o meu pai. Ele não correria o risco de ver sua família ser torturada. Teríamos que retornar para o Recife. Ele iria se virar sozinho. E um dia nos reencontraríamos...
E assim no final de fevereiro de 1970 estávamos de volta ao Recife. Conseguir colégio para os quatro e todas as necessidades que vinham junto: fardas, sapatos, livros, cadernos e material escolar. Eu fui para o Salesiano, Ivan para o Marista, Susana e Helena para o Nossa Senhora do Carmo.
Creio em fins de março, os meus tios (Célio e Lourdinha), de novo cederam uma residência para nós. Desta vez na praia de Piedade. De todos os nossos parentes foram esses os mais presentes, ou parafraseando: “os amigos mais certos das horas incertas”. Eles e os filhos deles, os nossos primos-irmãos – Celinho, Fernando Roberto, Eliane e Ricardo Luiz
Apesar de estudarmos em colégios de bom nível educacional e pedagógico, era através de bolsas com 50% de abatimento.
Com os atos institucionais, além da cassação do mandato, o meu pai foi demitido do Banco do Brasil, e considerado “morto-contábil”. Minha mãe recebia uma pensão do INSS de cerca de 3,5 salários-mínimos.
No Colégio Salesiano eu era chamado de “vermelhinho”, por me posicionar sempre à esquerda diante de tantos filhos da pequena-burguesia recifense, e de cerrar filas com o Pe. Ivan nas suas “aulas de religião”, onde analisava as letras de Geraldo Vandré, como por exemplo Porta Estandarte: “Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim/ Desce o teu rancho cantando essa tua esperança sem fim/ Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção/ Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”...
Ano difícil este em que tínhamos 90 milhões em ação e tudo era pra frente Brasil!...
O povo amordaçado, a censura não permitia nem que se publicasse o nome D. Hélder. No Brasil afora as prisões ilegais, as torturas e os assassinatos eram a marca comum daquele presidente Médici.
Acredito quer foi nesse momento que começou a desconstrução do nosso atual aparato de segurança pública, que resultou na corrupção que vivenciamos hoje, onde qualquer agente de segurança, civil ou militar, pensa ter o poder de vida e de morte, e conta com a certeza da impunidade por atitudes coorporativas nas instaurações dos inquéritos/processos. Eles fizeram muito bem o “serviço sujo” que a repressão tanto precisava. E tudo em nome de Deus, da Família e da Propriedade...
No final do ano de 1970, nas festas de Natal e Ano-Novo, conseguimos falar com papai por telefone. Como uma voz vale mais que mil presentes!
E 1971 começou. Novas esperanças de que num passe de mágica o pesadelo iria terminar e tudo voltaria a ser como antes do início da “ditabranda”.
Para um adolescente de dezesseis anos, com casa, comida, escola, roupa lavada, muitos colegas no colégio e na praia, a vida consegue ter um aspecto quase que normal. Nessa época já começava a gostar de uma batida de limão. Bebida barata e bastante desinibidora. Também costumava fumar nos fins de semana.
Tinha uma namorada e isto somado ao resto, me causava uma sensação de segurança e realização. Dava até para esquecer a vida diferente que levava. Tentava aprender a aranhar o violão com as musicas de Tim Maia, Paulo Diniz, Chico Buarque e Roberto Carlos.
O ano de 1971 terminou sem nenhuma novidade. De novo as festas de Natal e de Ano Novo na casa dos meus tios, com os mesmos telefonemas do meu pai e as novas esperanças de que 1972 haveria de ser o ano em que tudo voltaria ao normal.
De novo toda a rotina do início de ano. A novidade é que tanto eu quanto meu irmão Ivan, não tínhamos conseguido um resultado positivo nas provas de segunda época (hoje se chama provas de recuperação). Fomos estudar no Colégio Carneiro Leão, que tinha uma prova de segunda época para àqueles alunos que não tinham conseguido passar nos seus colégios.
O nosso primo Fernando Roberto era professor de matemática no Carneiro Leão e de alguma forma deve ter facilitado a nossa matrícula.
Até hoje o meu irmão Ivan reconhece que foi graças a esse primo que ele começou a achar a matemática descomplicada e a tomar gosto por ela.
Eu comecei o ano encarnando “l’enfant terrible”. Já não conseguia respeitar os limites impostos por uma sociedade hipócrita, mentirosa e de falsos bons costumes. Da igreja eu já não esperava grandes milagres, e só respeitava alguns homens de boa vontade que vestiam batina. A instituição igreja já era uma coisa falida e mentirosa, creio que quase já a enxergava como o ópio do povo.
No meio do ano, junho/1972, eu, meu irmão e minha mãe, fomos para o Rio de Janeiro a fim de nos encontrarmos com papai e passarmos as férias juntos. Como ele se encontrava na clandestinidade o encontro teria de ser cheio de “truques e estratégias”. Ficamos na casa de um primo do meu pai (Clécio) que morava no Grajaú, e fomos nos encontrar com ele numa praça em Vila Izabel, creio que era a praça Barão de Drummond.
Lá ficamos sabendo que papai estava em São Paulo, e que eu e Ivan iríamos com ele de carro, e depois mamãe iria. Por motivos de segurança. Quase dois anos depois voltamos a rever o nosso pai, que tanto a nossa mãe admirava e nos fazia endeusar também.
No dia seguinte saímos de táxi e nos encontramos com ele na mesma praça, de onde seguimos viagem para São Paulo.
Ao chegarmos em São Paulo ficamos hospedados na casa de um amigo dele, João Guerra e Conceição, que nós já conhecíamos do Recife.
Nosso pai traçou roteiros e planos para aquele mês de julho. Em alguns dias sairíamos da casa dos Guerra (rua Veiga Filho), seguiríamos um roteiro de ruas até o centro e iríamos almoçar com ele. Ele estava trabalhando na Arte & Comunicação, uma editora que publicava o Jarnalivro, a Turma da Mafalda e do Charles Brown, e também a revista Bondinho, que era distribuída nos supermercados Pão de Açúcar.
Fomos orientados, entre outros programas, a irmos de ônibus ao Museu do Ipiranga. Conhecemos também o Planetário do Parque Ibirapuera.
Meu pai realmente gostava de ensinar a pescar!
De uma maneira muito sutil tomamos conhecimento que o nosso pai estava vivendo com uma mulher. Fomos apresentados e muito bem recebidos. Conhecemos um casal Sandra e Zé Fernandes, que deviam ter entre 30 e 35 anos. Eram alegres e de idéias jovens. Sandra me presenteou com uma jaqueta “meio hippie”.
Após uns 15 dias a minha mãe chegou. Com ela fomos visitar uns compadres dos meus pais em Santos (João e Terezinha Grizzi), papai nos levou pela antiga estrada de São Paulo-Santos, que é cheia de paradas imperiais, uma estrada estreita, perigosa, mas de paisagens inesquecíveis.
Em São Paulo fizemos visitas a casa de Epitácio e Lourdinha, que também já conhecíamos do Recife, e minha mãe era também amiga deles, e nós já conhecíamos os filhos deles, Ana Cristina, Tacinho, Sidnei e Ricardo, deste último meus pais eram padrinhos.
A essa altura dos acontecimentos havia uma proposta para que em 1973, eu e Ivan fossemos morar e estudar em São Paulo com papai. Creio que sem nenhuma hesitação nós dois topamos de cara. Após toda a peregrinação sofrida desde 1964, teríamos de novo o nosso pai conosco. Só teria um porém: mamãe não poderia ir.
Ela em nenhum momento se opôs ao nosso desejo, e nunca falou uma palavra de desgosto ou de rancor para com o meu pai, e nem tampouco para com nós sois
Antes de retornarmos para Recife, tomamos aquele banho de loja na Rua Augusta, e nos despedimos com a certeza de um reencontro no final do ano. São Paulo inebriava naquele começo de década, era a encarnação do primeiro mundo, e como enchia os meus olhos.
Voltamos e desfazendo as malas e mostrando as novidades aos nossos amigos vizinhos, tínhamos ganho também um gravador K7 Sony, e era pra época o top da high tech.
O meu vizinho Nenê, irmão de Nequinho, observando a jaqueta que eu tinha ganho de Sandra em SP, notou que ela tinha um compartimento secreto. Naquele compartimento secreto, descobrimos um pozinho verde, que Nenê jurou ser maconha. Como aquele meu vizinho de abril de 1964, Lúcio Figueirôa, estudava na minha sala de aula no Carneiro Leão e era um cara por dentro das coisas, resolvi levar para ele analisar o material. Era mas não dava pra nada. Ele me disse que conseguiria um cigarro pra que eu experimentasse
No dia seguinte ele levou, e ao chegar em casa já avisei a Nenê a “novidade”. Combinamos que depois do almoço iríamos para atrás de casa, nos cajueiros experimentar.
Levei um radinho de pilha, dois cigarros da minha mãe, uma caixa de fósforos e o “cigarrinho”. Ficamos de cócoras e acendemos o “baseado”. Segundo Nenê era para tragar e segurar a fumaça o máximo possível. Após umas dez tragadas, comecei a escutar a música do radinho meio diferente, como estava de cócoras sentia as pulsações do meu coração se irradiando, ao olhar para Nenê ele também estava meio diferente, então comecei a rir sem medidas e sem medo, e ele me dizia fica quieto pó, não dá bandeira! Não adiantava quanto mais ele falava e tentava se aquietar, mais eu ria. Voltamos para casa.
Eu com uma crise de risos e ele meio sisudo e medroso. Cheguei em casa, comi quase que 1/3 de uma lata de goiabada e creio que um litro d’água. Me deitei o literalmente comecei a fazer uma viagem por dentro do meu corpo.
No começo da noite acordei, e Nenê veio me dizer que não tinha conseguido ir ao colégio – ele estudava de tarde.
Para mim a experiência tinha sido realmente interessante.
Dizem também, que toda coisa boa traz consigo uma coisa ruim.
De fato aquele segundo semestre de 1972 não seria dos melhores.
A minha procura pela “erva” se iniciou, e o meu interesse pelos estudos foi inversamente proporcional. Não via a hora de chegar o fim do ano para ir morar em São Paulo.
E não deu outra fui reprovado e meu irmão colou comigo, ou seja cursaríamos a mesma série. Em 1973 eu iria repetir o 1º ano científico (1º ano do segundo grau) e ele iria iniciar.
O fim do ano chegou e no meio do mês de dezembro viajamos para São Paulo. Estávamos prontos para o começo de um admirável mundo novo.
Logo que chegamos conhecemos o nosso novo apartamento. Camas novas, escrivaninhas e estantes individuais. Tudo mobília conteporânea.
Avisei a papai do ocorrido no Recife com relação ao real motivo da minha repetência de ano. Ele de novo me alertou sobre a sua situação de clandestinidade e me disse que caso eu sentisse vontade de fumar, não fosse procurar na rua porque colocaria em risco a sua condição.
Nesse ano de 1973, ele estava trabalhando numa agência de propaganda e publicidade. A Marcus Pereira Publicidade. A conta da Cia. Cacique de Alimentos era dele. Era o lançamento do Café Pelé. E tive a oportunidade de conhecer o atleta do século e também o Emerson Fittipaldi pela Coopersucar.
Fomos estudar no Colégio Integrado Objetivo, situado na Av. Paulista. Para 1973 era um colégio com recursos didáticos avançados, correção de provas por leitura ótica, e todo material didático de produção própria, incluindo circuito fechado de TV para aulas de revisão e testes simulados. Até quem não fizesse força não tinha como não aprender. Era só freqüentar as aulas e as revisões. Pouca vezes na vida tive tanto gosto de estudar. O demais alunos que começaram a fazer parte da minha turma cultivavam um gosto pela leitura, e foi justamente nesse época que li os clássicos de Herman Hesse, Aldous Huxley, Timothy Leary e Carlos Castañeda. Também me iniciei no uso dos expansores de consciência e de fato o mundo lisérgico quando orientado para certos objetivos e pensamentos, promovem uma abertura na compreensão do sentido da amplidão e da pequenez do ser, que muito contribuem para a formação de um espírito solidário e mais compreensivo das diferenças, e do que realmente é importante na vida. Quase que compreendi a frase: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo!” (Demian - H. Hesse).
Nesse ano além das histórias que ouvia em casa sobre prisões e torturas de comunistas, também convivi com conflitos domésticos. A mulher do meu pai, uma senhora de mais de trinta anos, no mais puro estilo balzaquiano, obrigou a saída do meu irmão Ivan – 16 anos de casa. Meu pai era comunista idealista e à margem da corrente que defendia o conflito armado como forma de conquista do poder. Não soube administrar o conflito de um adolescente de 16 anos, meu irmão, com uma mulher de formação superior e adulta...
O ano de 1973 terminou, meu irmão Ivan retornou para Recife/PE, e eu fui “orientado” por meu pai a procurar um emprego. Tinha completado 18 anos em novembro. Não pude passar as férias com a minha mãe, e meu único objetivo era um emprego.
Em janeiro de 1974 consegui um emprego como escriturário no Banco Novo Mundo, agência Pamplona.
Também consegui uma bolsa de estudos integral, no Colégio Objetivo.
Estudava de 07:30h às 11:30h, voltava para casa almoçava e me dirigia ao banco para uma jornada de 12:30h às 18:30h.
Nesse ano meu pai estava gerenciando uma fábrica de óleo de soja em Cafelândia, interior de São Paulo. A dura poesia de Sampa começou a bater na minha cabeça.
Em setembro de 1974, retornei para o Recife, e lá terminei o 2º ano científico.
Entre dezembro de 1974 e fevereiro de 1975, trabalhei de 24:00 às 06:00 no Mar Hotel em Recife, era mecanógrafo. A pessoa depois que se acostuma a trabalhar para ganhar dinheiro, se ressente da falta do danado!
Em março começou o último ano, antes do vestibular. Estava com 19 anos e bebendo leite em peito de onça!
E “não era belo mas mesmo assim haviam mil garotas sim!” Ao invés de Help, Ticket to Ride, Lady Jane ou Yesterday, eu cantava “ Caminhando ou Pra não dizer que eu não falei de flores”.
Fim um curso de programação liguagem Assembler, e em outubro de 1975 comecei a trabalhar na Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife. Voltei a ter dinheiro no bolso. Redirecionei o meu vestibular de engenharia mecânica para ciências econômicas (noturno).
Em janeiro de 1976 fui aprovado na Universidade Federal de Pernambuco.
Já que alguns órgãos da imprensa negam, e dizem que a Ditadura foi uma Ditabranda, vou relatar a minha experiência com essa tal DITABRANDA.
No dia 1º de abril de 1964, como de costume, já antes das 07:00h estava acordado e pronto para ir para a escola. Lúcio Figueirôa, o meu vizinho da esquerda, me disse que não haveria aulas e que os tanques de guerra estavam nas ruas. Como já estava prevenido pensei que ele queria me pregar um 1º de abril. Aos poucos fui percebendo que algo de fato estava diferente. O carro do meu pai não se encontrava na garagem e não fui para a escola. O resto do dia foi de visitas inesperadas de tios e outros. No dia seguinte saímos e fomos para a casa da minha avó materna. Seguiram-se dias em que sucessivas vezes jipes apareciam procurando o meu pai, que de fato eu não sabia onde se encontrava. Estava sumido. Na época meu pai era deputado estadual e líder do governo de Miguel Arraes na assembléia legislativa. Oriundo do movimento sindical bancário e funcionário do Banco do Brasil há 18anos.
Como existia na minha casa uma relativa transparência de atos e fatos, eu já pressentia que se tratava do fato do meu pai ser “comunista”. Meu pai já me havia orientado a responder aos meninos da vizinhança, quando fosse chamado de “filho de comunista”, que: “é melhor ser comunista do que ladrão!”
Finalmente no dia 06 de abril soube que o meu pai se encontrava preso, mas que logo aquilo se resolveria. Assim começava a “ditabranda” para mim e para os meus. Longe da minha casa, do meu quintal com fruteiras e dos meus carrinhos de lata artesanais. Ao invés de uma rua de bairro, uma rua do centro da cidade.
Bem acolhido, amado e protegido. Mas longe da minha casa.
Houve o dia do “bota fora” e da “fogueira da santa inquisição”. Tentava salvar escondendo, livros, revistas de Cuba, flâmulas e broches. Mas por segurança tínhamos que nos desfazer daquele “material subversivo”. Eu não entendia como podiam as letras fazerem tanto mal as pessoas? Letras dos livros que meu pai tanto gostava. Consegui esconder e salvar duas caixas de charutos cubanos.
Foram meses de revolta interna movida tão somente pelas saudades e pelo sentimento de perda. O sentido da injustiça não se delineava bem na minha cabeça. Mas de uma coisa eu tinha certeza: meu pai não havia nem matado e nem roubado, ninguém e nada.
Foi nessa época que os meus tios (irmã da minha mãe e primo do meu pai), disponibilizaram parte de uma residência para minha mãe e os quatro filhos(dois casais). Era bem mais ampla do que a casa da minha avó materna.
Em julho de 1964 consegui ir visitar meu pai em Fernando de Noronha, indo num avião da FAB. Passamos umas 3 horas juntos, almoçamos, e ele me deu uma lata de suco de tomate que foi buscar na sua cela, “especialmente para mim”.
Foi durante esse período que quando chegava alguma correspondência do meu pai para a minha mãe, nós íamos ao IVº Exército, onde o então Coronel Ibiapina (hoje general de pijamas), lia na carta com o que “ele achava que devia ser lido” e logo após na nossa frente a rasgava e metia a mesma no balde de lixo.
Mais ou menos em setembro de 1964 ele veio para o Recife, e ficou na 2ª Cia de Guardas, onde diariamente eu levava uma marmita e um litro de leite. Muitas vezes no lacre de alumínio do litro de vidro do leite, minha mãe escondia um mini-bilhete para ele.
Em dezembro meu pai foi transferido para a Casa de Detenção do Recife, onde estavam Gregório Bezerra e Ivo Valença (dois que me lembro pois brincavam e conversavam comigo). Para as minhas duas irmãs, de 4 e 2 dois anos respectivamente, a Casa de Detenção era um “hospital”. Uma mentirinha para a pouca compreensão delas...?
Apesar de toda a adversidade do momento foi uma das noites de natal mais marcante e feliz que passei na minha vida. Na Casa de Detenção do Recife, com o meu pai preso, mas estávamos todos juntos, e era o que de fato era importante.
No começo de 1965, tentamos uma saída, e de novo com o casal de tios irmãos, pegamos uma carona para o Rio de Janeiro, num Aero-Willis 2600. O irmão do meu pai, um tecnoburro oriundo do BID, não conseguiu agüentar a barra até que um Habeas-Corpus fosse deferido para o meu pai.
Ao final de fevereiro de 1965, eu e meu irmão voltamos para o Recife.
Creio que na realidade o meu “tio gilvan” não queria comprometer a sua carreira profissional com aspectos fora do seu contexto.
Em fevereiro de 1965, eu e meu irmão Ivan, voltamos para o Recife.
De novo a mesma maratona.
Em abril de 1965, por força de um Habeas-Corpus, meu pai foi libertado enfim. Foram 369 dias preso.
Ainda tentou permanecer em Recife, mas as insistentes “visitas e convites” do DOPS, acabaram com as esperanças de um possível recomeço. Ele deixou Recife rumo ao Rio de Janeiro. Aí começava o grande êxodo do meu pai. França, Checoslovaquia, Bulgária, Hungria, Argélia, e por fim se exilando na Republica Oriental do Uruguai.
Vocês não imaginam o que a falta e o desconhecimento de um destino fazem com a cabeça de uma criança.
Terminei o ano de 1965 sendo suspenso da escola primária, com uma típica revolta sem causa e mais uma vez maculado no meu direito.
O ano de 1966 não seria dos melhores. Por medo ou precaução os familiares acharem por bem me inscreverem em um colégio interno. Os beneditinos, ou por fama ou por conservadorismo, foram os escolhidos: MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE GARANHUNS.
Só quem viveu situação semelhante pode avaliar o que é.
Enxoval de pijamas de flanela, cobertores, tudo em conformidade com as regras “monásticas”.
No primeiro dia chorei na cama antes de dormir. Mas tinha sido educado a “quando gostar mastigue, quando não gostar engula!”
Após 45 dias, meu irmão Ivan, também veio dividir a minha agonia. Já não estava tão sozinho.
Conseguimos superar o ano, e ao final de 1966, fomos surpreendidos com uma notícia no mínimo alvissareira: iríamos viajar para nos encontrar com papai.
Em dezembro de 1966, iniciamos uma viagem rumo a Montevidéu-Uruguai. Recife-Rio; Rio-São Paulo; São Paulo-Curitiba; Curitiba-Porto Alegre e Porto Alegre Montevidéu.
Só quem passou tanto tempo sem avistar o pai sabe o que significou o nosso reencontro. Foi como se todo o mal estivesse enterrado.
No minúsculo apartamento do meu pai, na playa de pocitos, a geladeira estava repleta daquelas frutas típicas e anormais aos climas quentes: uvas, ameixas, pêssegos.
Enfim o terror havia acabado.
Neste final de ano (1966) e inicio de verão de 1967, tive a grata satisfação de conhecer homens como Darci Ribeiro, Amauri Silva, João Goulart, Leonel Brizola, Stanford, Cláudio Braga, Almir Braga, dentre tantos outros que me causavam admiração.
Foi um verdadeiro “summer holliday”. Afinal, depois de tanto sofrimento eu estava de novo feliz e alegre, no fundo da minha alma.
O meu pai, de vez em quando, também sorria e brincava conosco, com as suas gargalhadas personalíssimas.
Parodiando Neruda, confesso que estava feliz.
Fomos matriculados, eu e Ivan(meu irmão) numa escola do Uruguai – Escuela Brasil.
A vida parecia que tinha voltado ao seu ritmo normal. Aprendemos a língua e parte da história e geografia do país.
Dois meses depois minhas duas irmãs, Susana e Helena, vieram completar a família.
Vocês não imaginam o que é um casal com quatro filhos morar em um kitnet, composto de quarto, sala cozinha e banheiro! Neste pequeno imóvel a minha mãe lavava as roupas de todos. Cama, mesa, banho e roupas pessoais. Hoje reconheço a fibra e a coragem que ela tinha. Nunca disse um ai!
Éramos todos lutadores. E tínhamos o tal espírito de corpo!
Como em 1968 eu e meu irmão começaríamos o ginásio, deveríamos voltar para estudar no Brasil.
Voltamos para Pernambuco, e fomos para um internato em Garanhuns/PE, o Colégio Diocesano. Nesse Colégio tínhamos o apoio de Miguel Malta e João Bosco Coutinho, simpatizantes do movimento progressista, e aparentados de amigos do meu pai.
Ao final do ano quando estávamos retornando ao Uruguai, tínhamos feito uma escala estratégica no rio de Janeiro, e lá nos encontrávamos na fatídica sexta-feira, 13 de dezembro. A coisa não dava sinais de melhora, ao contrário o AI 5 acabou de vez com todos os direitos.
Passamos o final do ano em Montevidéu e as férias, para no início do ano de 1969 irmos estudar, internos também, em Porto Alegre no Colégio Marcelino Champagnat.
Foram tempos difíceis, mas entremeados de novos horizontes, novos hábitos e culturas. Dizem que toda coisa ruim traz uma coisa boa.
No final de 1969 retornamos, eu e meu irmão, para o Uruguai, e tivemos a notícia de que voltaríamos para o Brasil.
Fomos em partes para o Rio de Janeiro.
Alugaram um apartamento entre Santa Tereza e o Catumbi. Meu pai se chamaria Amauri Lages, e as meninas foram orientadas a não falar em Uruguai. Tanto que de vez em quando as duas em conversas se repreendiam mutuamente:”não se pode falar em Uruguai”... Seria cômico se não fosse trágico. Eu e Ivan ganhamos bicicletas semi-novas, rodamos e conhecemos o Rio de Janeiro, horizontalmente e verticalmente. Zona sul, norte, mata da gávea e estrada do corcovado. Também fizemos programas com a família toda reunida: museu da Quinta da Boa Vista, Museu do Índio, Urca e Pão de Açúcar.
Assistimos o 1000º gol de Pelé, rompemos o ano na praia de Copacabana.
O ano de 1970 começava sob o comando sangrento de Médici. Em fevereiro um amigo do meu pai foi preso, junto com a família, e o seu filho de 11 anos foi torturado na frente dele.
Isto significou a gota d’água para o meu pai. Ele não correria o risco de ver sua família ser torturada. Teríamos que retornar para o Recife. Ele iria se virar sozinho. E um dia nos reencontraríamos...
E assim no final de fevereiro de 1970 estávamos de volta ao Recife. Conseguir colégio para os quatro e todas as necessidades que vinham junto: fardas, sapatos, livros, cadernos e material escolar. Eu fui para o Salesiano, Ivan para o Marista, Susana e Helena para o Nossa Senhora do Carmo.
Creio em fins de março, os meus tios (Célio e Lourdinha), de novo cederam uma residência para nós. Desta vez na praia de Piedade. De todos os nossos parentes foram esses os mais presentes, ou parafraseando: “os amigos mais certos das horas incertas”. Eles e os filhos deles, os nossos primos-irmãos – Celinho, Fernando Roberto, Eliane e Ricardo Luiz
Apesar de estudarmos em colégios de bom nível educacional e pedagógico, era através de bolsas com 50% de abatimento.
Com os atos institucionais, além da cassação do mandato, o meu pai foi demitido do Banco do Brasil, e considerado “morto-contábil”. Minha mãe recebia uma pensão do INSS de cerca de 3,5 salários-mínimos.
No Colégio Salesiano eu era chamado de “vermelhinho”, por me posicionar sempre à esquerda diante de tantos filhos da pequena-burguesia recifense, e de cerrar filas com o Pe. Ivan nas suas “aulas de religião”, onde analisava as letras de Geraldo Vandré, como por exemplo Porta Estandarte: “Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim/ Desce o teu rancho cantando essa tua esperança sem fim/ Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção/ Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”...
Ano difícil este em que tínhamos 90 milhões em ação e tudo era pra frente Brasil!...
O povo amordaçado, a censura não permitia nem que se publicasse o nome D. Hélder. No Brasil afora as prisões ilegais, as torturas e os assassinatos eram a marca comum daquele presidente Médici.
Acredito quer foi nesse momento que começou a desconstrução do nosso atual aparato de segurança pública, que resultou na corrupção que vivenciamos hoje, onde qualquer agente de segurança, civil ou militar, pensa ter o poder de vida e de morte, e conta com a certeza da impunidade por atitudes coorporativas nas instaurações dos inquéritos/processos. Eles fizeram muito bem o “serviço sujo” que a repressão tanto precisava. E tudo em nome de Deus, da Família e da Propriedade...
No final do ano de 1970, nas festas de Natal e Ano-Novo, conseguimos falar com papai por telefone. Como uma voz vale mais que mil presentes!
E 1971 começou. Novas esperanças de que num passe de mágica o pesadelo iria terminar e tudo voltaria a ser como antes do início da “ditabranda”.
Para um adolescente de dezesseis anos, com casa, comida, escola, roupa lavada, muitos colegas no colégio e na praia, a vida consegue ter um aspecto quase que normal. Nessa época já começava a gostar de uma batida de limão. Bebida barata e bastante desinibidora. Também costumava fumar nos fins de semana.
Tinha uma namorada e isto somado ao resto, me causava uma sensação de segurança e realização. Dava até para esquecer a vida diferente que levava. Tentava aprender a aranhar o violão com as musicas de Tim Maia, Paulo Diniz, Chico Buarque e Roberto Carlos.
O ano de 1971 terminou sem nenhuma novidade. De novo as festas de Natal e de Ano Novo na casa dos meus tios, com os mesmos telefonemas do meu pai e as novas esperanças de que 1972 haveria de ser o ano em que tudo voltaria ao normal.
De novo toda a rotina do início de ano. A novidade é que tanto eu quanto meu irmão Ivan, não tínhamos conseguido um resultado positivo nas provas de segunda época (hoje se chama provas de recuperação). Fomos estudar no Colégio Carneiro Leão, que tinha uma prova de segunda época para àqueles alunos que não tinham conseguido passar nos seus colégios.
O nosso primo Fernando Roberto era professor de matemática no Carneiro Leão e de alguma forma deve ter facilitado a nossa matrícula.
Até hoje o meu irmão Ivan reconhece que foi graças a esse primo que ele começou a achar a matemática descomplicada e a tomar gosto por ela.
Eu comecei o ano encarnando “l’enfant terrible”. Já não conseguia respeitar os limites impostos por uma sociedade hipócrita, mentirosa e de falsos bons costumes. Da igreja eu já não esperava grandes milagres, e só respeitava alguns homens de boa vontade que vestiam batina. A instituição igreja já era uma coisa falida e mentirosa, creio que quase já a enxergava como o ópio do povo.
No meio do ano, junho/1972, eu, meu irmão e minha mãe, fomos para o Rio de Janeiro a fim de nos encontrarmos com papai e passarmos as férias juntos. Como ele se encontrava na clandestinidade o encontro teria de ser cheio de “truques e estratégias”. Ficamos na casa de um primo do meu pai (Clécio) que morava no Grajaú, e fomos nos encontrar com ele numa praça em Vila Izabel, creio que era a praça Barão de Drummond.
Lá ficamos sabendo que papai estava em São Paulo, e que eu e Ivan iríamos com ele de carro, e depois mamãe iria. Por motivos de segurança. Quase dois anos depois voltamos a rever o nosso pai, que tanto a nossa mãe admirava e nos fazia endeusar também.
No dia seguinte saímos de táxi e nos encontramos com ele na mesma praça, de onde seguimos viagem para São Paulo.
Ao chegarmos em São Paulo ficamos hospedados na casa de um amigo dele, João Guerra e Conceição, que nós já conhecíamos do Recife.
Nosso pai traçou roteiros e planos para aquele mês de julho. Em alguns dias sairíamos da casa dos Guerra (rua Veiga Filho), seguiríamos um roteiro de ruas até o centro e iríamos almoçar com ele. Ele estava trabalhando na Arte & Comunicação, uma editora que publicava o Jarnalivro, a Turma da Mafalda e do Charles Brown, e também a revista Bondinho, que era distribuída nos supermercados Pão de Açúcar.
Fomos orientados, entre outros programas, a irmos de ônibus ao Museu do Ipiranga. Conhecemos também o Planetário do Parque Ibirapuera.
Meu pai realmente gostava de ensinar a pescar!
De uma maneira muito sutil tomamos conhecimento que o nosso pai estava vivendo com uma mulher. Fomos apresentados e muito bem recebidos. Conhecemos um casal Sandra e Zé Fernandes, que deviam ter entre 30 e 35 anos. Eram alegres e de idéias jovens. Sandra me presenteou com uma jaqueta “meio hippie”.
Após uns 15 dias a minha mãe chegou. Com ela fomos visitar uns compadres dos meus pais em Santos (João e Terezinha Grizzi), papai nos levou pela antiga estrada de São Paulo-Santos, que é cheia de paradas imperiais, uma estrada estreita, perigosa, mas de paisagens inesquecíveis.
Em São Paulo fizemos visitas a casa de Epitácio e Lourdinha, que também já conhecíamos do Recife, e minha mãe era também amiga deles, e nós já conhecíamos os filhos deles, Ana Cristina, Tacinho, Sidnei e Ricardo, deste último meus pais eram padrinhos.
A essa altura dos acontecimentos havia uma proposta para que em 1973, eu e Ivan fossemos morar e estudar em São Paulo com papai. Creio que sem nenhuma hesitação nós dois topamos de cara. Após toda a peregrinação sofrida desde 1964, teríamos de novo o nosso pai conosco. Só teria um porém: mamãe não poderia ir.
Ela em nenhum momento se opôs ao nosso desejo, e nunca falou uma palavra de desgosto ou de rancor para com o meu pai, e nem tampouco para com nós sois
Antes de retornarmos para Recife, tomamos aquele banho de loja na Rua Augusta, e nos despedimos com a certeza de um reencontro no final do ano. São Paulo inebriava naquele começo de década, era a encarnação do primeiro mundo, e como enchia os meus olhos.
Voltamos e desfazendo as malas e mostrando as novidades aos nossos amigos vizinhos, tínhamos ganho também um gravador K7 Sony, e era pra época o top da high tech.
O meu vizinho Nenê, irmão de Nequinho, observando a jaqueta que eu tinha ganho de Sandra em SP, notou que ela tinha um compartimento secreto. Naquele compartimento secreto, descobrimos um pozinho verde, que Nenê jurou ser maconha. Como aquele meu vizinho de abril de 1964, Lúcio Figueirôa, estudava na minha sala de aula no Carneiro Leão e era um cara por dentro das coisas, resolvi levar para ele analisar o material. Era mas não dava pra nada. Ele me disse que conseguiria um cigarro pra que eu experimentasse
No dia seguinte ele levou, e ao chegar em casa já avisei a Nenê a “novidade”. Combinamos que depois do almoço iríamos para atrás de casa, nos cajueiros experimentar.
Levei um radinho de pilha, dois cigarros da minha mãe, uma caixa de fósforos e o “cigarrinho”. Ficamos de cócoras e acendemos o “baseado”. Segundo Nenê era para tragar e segurar a fumaça o máximo possível. Após umas dez tragadas, comecei a escutar a música do radinho meio diferente, como estava de cócoras sentia as pulsações do meu coração se irradiando, ao olhar para Nenê ele também estava meio diferente, então comecei a rir sem medidas e sem medo, e ele me dizia fica quieto pó, não dá bandeira! Não adiantava quanto mais ele falava e tentava se aquietar, mais eu ria. Voltamos para casa.
Eu com uma crise de risos e ele meio sisudo e medroso. Cheguei em casa, comi quase que 1/3 de uma lata de goiabada e creio que um litro d’água. Me deitei o literalmente comecei a fazer uma viagem por dentro do meu corpo.
No começo da noite acordei, e Nenê veio me dizer que não tinha conseguido ir ao colégio – ele estudava de tarde.
Para mim a experiência tinha sido realmente interessante.
Dizem também, que toda coisa boa traz consigo uma coisa ruim.
De fato aquele segundo semestre de 1972 não seria dos melhores.
A minha procura pela “erva” se iniciou, e o meu interesse pelos estudos foi inversamente proporcional. Não via a hora de chegar o fim do ano para ir morar em São Paulo.
E não deu outra fui reprovado e meu irmão colou comigo, ou seja cursaríamos a mesma série. Em 1973 eu iria repetir o 1º ano científico (1º ano do segundo grau) e ele iria iniciar.
O fim do ano chegou e no meio do mês de dezembro viajamos para São Paulo. Estávamos prontos para o começo de um admirável mundo novo.
Logo que chegamos conhecemos o nosso novo apartamento. Camas novas, escrivaninhas e estantes individuais. Tudo mobília conteporânea.
Avisei a papai do ocorrido no Recife com relação ao real motivo da minha repetência de ano. Ele de novo me alertou sobre a sua situação de clandestinidade e me disse que caso eu sentisse vontade de fumar, não fosse procurar na rua porque colocaria em risco a sua condição.
Nesse ano de 1973, ele estava trabalhando numa agência de propaganda e publicidade. A Marcus Pereira Publicidade. A conta da Cia. Cacique de Alimentos era dele. Era o lançamento do Café Pelé. E tive a oportunidade de conhecer o atleta do século e também o Emerson Fittipaldi pela Coopersucar.
Fomos estudar no Colégio Integrado Objetivo, situado na Av. Paulista. Para 1973 era um colégio com recursos didáticos avançados, correção de provas por leitura ótica, e todo material didático de produção própria, incluindo circuito fechado de TV para aulas de revisão e testes simulados. Até quem não fizesse força não tinha como não aprender. Era só freqüentar as aulas e as revisões. Pouca vezes na vida tive tanto gosto de estudar. O demais alunos que começaram a fazer parte da minha turma cultivavam um gosto pela leitura, e foi justamente nesse época que li os clássicos de Herman Hesse, Aldous Huxley, Timothy Leary e Carlos Castañeda. Também me iniciei no uso dos expansores de consciência e de fato o mundo lisérgico quando orientado para certos objetivos e pensamentos, promovem uma abertura na compreensão do sentido da amplidão e da pequenez do ser, que muito contribuem para a formação de um espírito solidário e mais compreensivo das diferenças, e do que realmente é importante na vida. Quase que compreendi a frase: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo!” (Demian - H. Hesse).
Nesse ano além das histórias que ouvia em casa sobre prisões e torturas de comunistas, também convivi com conflitos domésticos. A mulher do meu pai, uma senhora de mais de trinta anos, no mais puro estilo balzaquiano, obrigou a saída do meu irmão Ivan – 16 anos de casa. Meu pai era comunista idealista e à margem da corrente que defendia o conflito armado como forma de conquista do poder. Não soube administrar o conflito de um adolescente de 16 anos, meu irmão, com uma mulher de formação superior e adulta...
O ano de 1973 terminou, meu irmão Ivan retornou para Recife/PE, e eu fui “orientado” por meu pai a procurar um emprego. Tinha completado 18 anos em novembro. Não pude passar as férias com a minha mãe, e meu único objetivo era um emprego.
Em janeiro de 1974 consegui um emprego como escriturário no Banco Novo Mundo, agência Pamplona.
Também consegui uma bolsa de estudos integral, no Colégio Objetivo.
Estudava de 07:30h às 11:30h, voltava para casa almoçava e me dirigia ao banco para uma jornada de 12:30h às 18:30h.
Nesse ano meu pai estava gerenciando uma fábrica de óleo de soja em Cafelândia, interior de São Paulo. A dura poesia de Sampa começou a bater na minha cabeça.
Em setembro de 1974, retornei para o Recife, e lá terminei o 2º ano científico.
Entre dezembro de 1974 e fevereiro de 1975, trabalhei de 24:00 às 06:00 no Mar Hotel em Recife, era mecanógrafo. A pessoa depois que se acostuma a trabalhar para ganhar dinheiro, se ressente da falta do danado!
Em março começou o último ano, antes do vestibular. Estava com 19 anos e bebendo leite em peito de onça!
E “não era belo mas mesmo assim haviam mil garotas sim!” Ao invés de Help, Ticket to Ride, Lady Jane ou Yesterday, eu cantava “ Caminhando ou Pra não dizer que eu não falei de flores”.
Fim um curso de programação liguagem Assembler, e em outubro de 1975 comecei a trabalhar na Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife. Voltei a ter dinheiro no bolso. Redirecionei o meu vestibular de engenharia mecânica para ciências econômicas (noturno).
Em janeiro de 1976 fui aprovado na Universidade Federal de Pernambuco.
AMANHÃ SEGUE a 2ª Parte
Gilberto de Azevedo
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